4 de julho de 2008

O louco falhado

Ao contrário do que o Herberto deixava no ar ("se eu quisesse enlouquecia"), não basta querer, é preciso precisar. Muito. A insuportabilidade de estar ligado ao mundo varia, como as estratégias para lhe fazer frente. De alguma alienação à loucura ainda existem uns degraus, mesmo se os dados estiverem lançados. 

Observo regularmente um homem, sem-abrigo, nitidamente alienado mas que, para mal dos seus pecados, não enlouqueceu. À vista desarmada engana muita gente. Fala sozinho por causa da solidão (não fala com aqueles que alucina, mas esforça-se), ausenta-se mesmo estando lá, faz coisas sem nexo aparente. Ele tenta, adoraria enlouquecer, mas não basta querer. Provavelmente bloqueou, até ver, num patamar intermédio, o que o condena a continuar a sofrer das (com) as mesmas coisas. Não tanto como antigamente e, arrisco, hoje bem menos do que ontem, mas ainda  sem solução. 

O facto seleccionado desta minha ideia tem a ver com o rádio a pilhas, de que parece não conseguir separar-se. Deve ser um subsídio extra de alienação, mas aquelas canções, aquela estação específica, escolhida a dedo, devem trazer-lhe memórias lá das festas da aldeia. Demasiada realidade para alguém lhe declarar a loucura. 

Penso nele, nesta senda extrapolatória, como um louco falhado. Um louco como deve ser deixa, praticamente, de sofrer com certas e determinadas coisas (sofre com outras), porque transforma-se no seu próprio demiurgo. Jamais permitiria que a música viesse de fora.