3 de abril de 2008

Toda A Verdade

Certo dia, a mãe de uma menina mandou-a levar um pouco de pão e leite à sua avó. Quando caminhava pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe onde ia.

- Para a casa da avozinha.

- Por qual caminho, o dos alfinetes ou o das agulhas?

- O das agulhas.

O lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou o seu sangue numa garrafa, cortou a carne em fatias e colocou-as numa travessa. Depois, vestiu a sua roupa de dormir e deitou-se na cama, à espera. 

Pa, pam.

- Entre, querida.

- Olá, avozinha. Trouxe-lhe um pouco de pão e leite.

- Sirva-se também, querida. Há carne e vinho na copa. 

A menina comeu o que lhe foi oferecido, enquanto um gatinho dizia: "Menina perdida! Comer a carne e beber o sangue da avó!"

Então o lobo disse:

- Tire a roupa e deite-se comigo.

- Onde ponho o meu avental?

- Atire-o ao fogo. Não vai voltar a precisar dele.

Para cada peça de roupa (...) a menina fazia a mesma pergunta, e a cada vez o lobo respondia:

- Atire ao fogo... (etc.).

Quando a menina se deitou na cama, disse:

- Ah, avozinha! Como você é peluda!

- É para me manter mais aquecida, querida.

-Ah, avozinha! Que ombros largos você tem!

(etc., etc., nos moldes do diálogo conhecido, até ao clássico desfecho):

- Ah, avozinha! Que dentes grandes você tem!

- É para te comer melhor, querida.

E devorou-a.

*

Este conto foi recolhido por Charles Perrault, da tradição oral camponesa do século XVII. Termina bruscamente assim. Não há caçador corajoso nem resgate da Capuchinho ou da avó. Não existe final feliz nem uma moral da história. As narrativas populares europeias, matrizes dos modernos contos infantis que, a partir das adaptações feitas no século XIX, passaram a integrar a mitologia universal, não apresentavam a riqueza simbólica que faz dos contos de fadas um depósito de significações inconscientes. Longe de ocultar a sua mensagem com símbolos, os contadores de histórias do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.

Post adaptado de 'Fadas No Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis'; Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso; ArtMed; 2006