6 de abril de 2008

Os Vigilantes

O silêncio é a morte
E tu, se falas, morres
Se te calas, morres
Então, fala e morre.

Tahar Djaout
*

Argélia, década de 60, logo a seguir à Guerra da Independência. Mahfoudh Lemdjad inventou um tear. Depois de anos a pensar, planear, maquetear, organizar, fez-se à sorte de registar a patente num qualquer gabinete do estado. Ainda não faz ideia de que a luz que, madrugada fora, emana dos seus aposentos, lhe garantiu processos de intenção e um rigoroso escrutínio por parte de um grupo de zelosos cidadãos vigilantes. 

O secretário da câmara, onde Mahfoudh tentou o registo, discorre sobre a estranheza do pedido: "- Não é todos os dias que nos aparece um caso relacionado com inventos. Por isso há que dar desconto às nossas reacções. Por certo não ignora que na nossa sagrada religião as palavras 'criação' e 'invenção' são por vezes condenadas, porque entendidas como heresia, um pôr em causa o que já existe, nos domínios da fé e da ordem estabelecida. A nossa religião recusa-se a aceitar os criadores devido às suas ambições e à sua falta de humildade; recusa-se porque tem em vista preservar a sociedade dos problemas que uma inovação traz consigo. (...) O senhor veio perturbar a nossa paisagem familiar de homens que vêm em busca de pensões de guerra, de rendimentos no comércio, de licenças de táxi, de lotes de terreno, de materiais de construção; que se servem de toda a sua energia a descobrir produtos que não existem como a manteiga, os ananases, os legumes secos ou os pneus. Como quer o senhor que eu consiga classificar o seu invento neste universo esofágico? O mais que posso aconselhar-lhe é voltar calmamente para casa a fim de nos conceder um tempo de reflexão que nos permita, assim o Altíssimo se digne assistir-nos, conter e digerir a nossa emoção." Claro que o gajo ficou a ferver em ódio. E a conspiração dos vigilantes continua, nas sombras. Vai dar obviamente merda, porque Mahfoudh não é visto nas orações e, está agora demonstrado, cogita noite fora, tudo da sua cabeça. 

A caminho da capital visita o irmão, com quem espera recarregar forças para voltar à luta. Mas Younès, frustrado pela vida académica e profissional que nunca teve, transformara-se num ressabiado cumpridor do cânone: casou, teve filhos e não admite réplica em assuntos que versem a ordem natural das coisas. "- Serias um homem perfeito se não te faltasse a prática da oração. / Mahfoudh replicou que esse género de prática dependia do seu livre arbítrio e da sua consciência. E em relação a isso não sentia, nessa altura, qualquer problema." 

Mahfoudh está por um fio, já se vê. Como Tahar Djaout, assassinado em 1993 na sequência de várias ameaças de morte sobre o corpo de jornalistas do Ruptures (tiragem média de 70.000 exemplares), em que se incluía. 'Os Vigilantes' foi o seu último livro.